Impressionada com os acontecimentos, perplexa ante a letargia visível dos que deveriam ser agentes de mudanças e a histeria dos que deveriam calar me dou conta de que tenho descuidado do que realmente importa.
As crises são eternas, mesmo que com tréguas, mas se pousarmos o olhar sobre a história veremos que sempre houve a exploração, a mentira e a miséria. Estão absolutamente ligadas. Não há motivo, portanto, para nos surpreendermos com o momento histórico. O máximo que podemos fazer é poesia. E fazemos.
Caminho e salvação, a poesia nos acorda, mexe conosco, espanta as falsas ilusões, nos ejeta da zona de conforto e nos faz viajar do átomo às estrelas. Tudo é matéria de poesia.
Aqui estão dois momentos importantes na trajetória de um dos nomes que elegi (é muito difícil arrepender-se quando se elege um poeta) em tantos anos. A primeira diz respeito à 2a. edição de Sonetos dos Amores Mortos, de Rita Moutinho, inicialmente publicado em 2006, bem como a edição bilingue (castellano - português) de Vocabulario: um hombre, das Ediciones Ruinas circulares, Buenos Aires,

Fiquemos com Rita.
SONETO DA MENSAGEM DO JARDIM
Soube notícia dele: vai vivendo.
Passeio no quintal emurchecido
com a brisa escorregando dos meus dedos
e os perfumes dormindo sob os limos.
Secaram as flores sem o amor das regas,
e contam nossa história só gravetos,
ossos imóveis, nus da primavera
que habitou pelos anos o terreno.
Soube notícias dele: vai vivendo.
E o que faço plantada em chão de trevas?
que espalha também no ar mortas quimeras.
Digo-me seca, pisando o ex-jardim:
Suicidou-se somente para mim.
SONETO DO LUTO GRADUAL
Ainda não vivi luto total.
Tanto te vi morrer e renascer
que minha mão hesita em verter cal,
meu coração hesita em esquecer.
Lento, tem que ser lento e bem gradual
despir-me de tuas cores, esmaecer,
e dar ao fato o negro do fatal,
e dar ao tempo o vácuo do perder.
A dor, imperatriz do desespero,
descoroa-me já desses espinhos
que cingem meus momentos de exaspero.
Que restem após o luto azuis carinhos
e uma saudade mansa, um manso esmero
em aprender a revoar com passarinhos.
(in Sonetos dos Amores Mortos)
DECISÕES
Nós assim perdidos nesta cama,
assim com frio
onde fizemos filhos e incêndios.
Uma lareira? Os ares do campo?
Outra partida, tentativa, tentos?
O fim deste poema nós leremos
no tempo.
AQUELE HOMEM
Já foi pedra
esponja
a superfície
pouso
do seu corpo.
Desbravei seu peito,
comi o açúcar
louco
dos seus olhos.
Fui seu fosso,
dedilhei seus ossos,
adormeci na hora
do seu sono.
Não sou de ferro:
nem passado
nem ferrugem
somem
aquele homem.
PAIXÃO
Completamos o circuito
das horas sem ponteiros.
Nenhum modelo nos formaliza.
O relógio mais íntimo
bombeia nosso ritmo.
As bocas são siamesas,
a emoção é um nó
entre dois trilhos.
A paixão é isto
e não saber limites,
não ter pés para a despedida.
(in Vocabulario: un hombre)
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