quinta-feira, 9 de julho de 2015

RITA MOUTINHO

Impressionada com os acontecimentos, perplexa ante a letargia visível dos que deveriam ser agentes de mudanças e a histeria dos que deveriam calar me dou conta de que tenho descuidado do que realmente importa.
As crises são eternas, mesmo que com tréguas, mas se pousarmos o olhar sobre a história veremos que sempre houve a exploração, a mentira e a miséria. Estão absolutamente ligadas. Não há motivo, portanto, para nos surpreendermos com o momento histórico. O máximo que podemos fazer é poesia. E fazemos.
Caminho e salvação, a poesia nos acorda, mexe conosco, espanta as falsas ilusões, nos ejeta da zona de conforto e nos faz viajar do átomo às estrelas. Tudo é matéria de poesia.

Aqui estão dois momentos importantes na trajetória de um dos nomes que elegi (é muito difícil arrepender-se quando se elege um poeta) em tantos anos. A primeira diz respeito à 2a. edição de Sonetos dos Amores Mortos, de Rita Moutinho, inicialmente publicado em 2006, bem como a edição bilingue (castellano - português)  de Vocabulario: um hombre, das Ediciones Ruinas circulares, Buenos Aires,
2014,  tradução para o espanhol de Marta Spagnuolo, editado no Brasil em 1995.

Fiquemos com Rita. 









SONETO DA MENSAGEM DO JARDIM


Soube notícia dele: vai vivendo.
Passeio no quintal emurchecido
com a brisa escorregando dos meus dedos
e os perfumes dormindo sob os limos.
Secaram as flores sem o amor das regas,
e contam nossa história só gravetos,
ossos imóveis, nus da primavera
que habitou pelos anos o terreno.
Soube notícias dele: vai vivendo.
E o que faço plantada em chão de trevas?
Cedo minha raiz à mão do vento
que espalha também no ar mortas quimeras.
          Digo-me seca, pisando o ex-jardim:
          Suicidou-se somente para mim.


SONETO DO LUTO  GRADUAL

Ainda não vivi luto total.
Tanto te vi morrer e renascer
que minha mão hesita em verter cal,
meu coração hesita em esquecer.

Lento, tem que ser lento e bem gradual
despir-me de tuas cores, esmaecer,
e dar ao fato o negro do fatal,
e dar ao tempo o vácuo do perder.

A dor, imperatriz do desespero,
descoroa-me já desses espinhos
que cingem meus momentos de exaspero.

Que restem após o luto azuis carinhos
e uma saudade mansa, um manso esmero
em aprender a revoar com passarinhos.

(in Sonetos dos Amores Mortos)






DECISÕES

Nós assim perdidos nesta cama,
assim com frio
onde fizemos filhos e incêndios.

Uma lareira? Os ares do campo?
Outra partida, tentativa, tentos?

O fim deste poema nós leremos
no tempo.


AQUELE HOMEM

Já foi pedra
esponja
a superfície
pouso 
do seu corpo.

Desbravei seu peito,
comi o açúcar
louco
dos seus olhos.
Fui seu fosso,
dedilhei seus ossos,
adormeci na hora
do seu sono.

Não sou de ferro:
nem passado
nem ferrugem
somem
aquele homem.

PAIXÃO

Completamos o circuito
das horas sem ponteiros.
Nenhum modelo nos formaliza.
O relógio mais íntimo
bombeia nosso ritmo.

As bocas são siamesas,
a emoção é um nó
entre dois trilhos.
A paixão é isto
e não saber limites,

não ter pés para a despedida.


(in Vocabulario: un hombre)

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