quinta-feira, 16 de julho de 2015

TESOURA CEGA - CARLOS MACHADO

Conheci Carlos Machado em Salvador, quando ambos visitávamos a boa terra. A dele mesmo, de nascimento, e a minha, de puro sentimento. Conheci-o como jornalista, habitante de São Paulo, e passei a acompanhar desde então a página alguma poesia, minha preferida até hoje.
Dava para imaginar que a busca, a seleção, o cuidado com a edição de cada boletim, o poesia.net, só poderiam ser feitos por quem tivesse muita intimidade com a poesia, uma intimidade que pressupõe paixão.
Sabe-se que a dedicação à poesia não é para todos. Quase sempre é atividade de poeta, de quem não esmorece ante a adversidade, se chamarmos a isso esse tempo de explosões midiáticas. Basta dizer que se perguntamos a alguém o nome de três (está bem, dois) poetas brasileiros teremos como resposta os mais conhecidos, e com certeza mais conhecidos mortos do que em vida. Na real, nem quem gosta parece se interessar tanto. Isso é sinal de tempos obscuros, de descuido com a educação, do desconhecimento geral das elites sobre a importância (e a necessidade) da poesia. Carlos Machado navega contra isso, e sua luta é pacífica e magnífica, de resistência, de quem sabe que a garantia de manter viva a poesia já escrita é a existência dos poetas vivos. Só eles se dão ao trabalho de reler e reler, repensar, revelar, recriar. E por tudo isso, o que havia a esperar aconteceu: um pássaro novo pousou na literatura contemporânea brasileira - O pássaro de vidro, de 2006 trazia aos admiradores o livro próprio de Carlos Machado, este poeta delicado e incansável que mantém viva a obra de quantos souberam olhar o mundo e a si mesmos sem as rédeas do pensamento único.

Depois vieram Mané Ventura, Gonçalo e eu - uma história de cordel, de 2012, Cada bicho com seu capricho - poemas para crianças, de 2015, e Tesoura Cega, também de poemas, de 2015.
Carlos Machado passeia pelos temas eternos da poesia e também da sua própria eternidade, alcançada quando identifica seu papel no mundo, a originalidade do olhar, o entendimento com as coisas, o mar, o mundo, as gentes todas que nos habitam.

Como sabem, não sou crítica. Sou apenas amante e leitora de poesia. Do que gosto, gosto. Sobre o que não gosto, não adianta tergiversar. A crítica está nos textos de Mario Rui Feliciani e Ronaldo Costa Fernandes, autores dos textos da orelha e do posfácio, respectivamente.
O livro  é da dobra literatura e faz parte do Selo Donizete Galvão de poesia.
E abaixo vão três poemas do livro.




MAPA

De certo, apenas a incerteza.
O copo branco sobre a mesa
e esta aspiração de domingos.
De certo, a morte e seus respingos.

O menino azul quer um mapa,
carta de agir, segura e exata.
Quer seguir rijo, reto e justo
para justíssimo lugar.

O que, então, responder? Desiste,
esse lugar não há e  triste 
não há mapa, nem portulano,
nem porto lhano onde ancorar?

Como dizer? Menino, os mapas
não são roteiros de achamento,
mas tênues direções de vento
para quem só busca o buscar.


PASTELARIA TRIUNFO

Foi na Pastelaria Triunfo
uma casa de comércio na
Cidade da Bahia  mas também
um locus suspenso na memória
de meu amigo Santana  
que se deu aquele episódio
de criança, luzes, sorvetes
e alumbramento. Cada um
de nós tem sua Pastelaria Triunfo,
seu porto de sonhos à prova
de vento e desterro. Não importa
se um dia o lugar existiu
de física presença  na Ladeira
da Praça, na Graça, na Praça
da Sé  ou é apenas miragem,
amarrotado desvario que
mantém o homem vivo.

A CAÇA INSUBMISSA

Nada possuis do outro
nem corpo nem asa
nem mesmo o sopro
morno da palavra

teu é apenas o perfume
de carne e cedro
que aspiras na pele
da caça insubmissa

nada é teu: dorme
e inventa no sonho
outra forma de laço
caça sem caçador


...


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